O estado da literatura, ou "A Cicatriz" por Maria Francisca Gama
Este livro é uma merda (e pernicioso!) e a autora bloqueou-me nas redes sociais porque eu tenho razão. Do arquivo.
O Contexto
O meu recente pet peeve vem já numa onda de ser constantemente bombardeada com Colleen Hoover nas prateleiras de todas as livrarias, mas foi agora com o recente sucesso do livro “A Cicatriz” de Maria Francisca Gama que a minha animosidade começou a ganhar diferentes proporções.
Quando terminei a leitura d’ “A Cicatriz”, achei-o medíocre e esquecível; e continuei com o meu dia. Mas foi o delírio coletivo com este livro que me fez sentir portadora da red pill da literatura, com cada opinião positiva e acrítica que me deixava incrédula, e com cada opinião em surdina a concordar com o meu ponto de vista apesar de sermos uma minoria. Comecei a sentir-me uma cavaleira das Cruzadas, designada com uma missão de trazer a luz ao mundo literário, em particular o panorama nacional.
Chegados a este ponto, ponho as cartas na mesa. Não gostei do livro, mas irritou-me ainda mais os elogios acríticos, e tomei a peito ser uma voz dissonante. Já sabem a motivação por detrás da crítica. Dou-vos o espaço para virarem o alvo não para o livro ou para a autora, mas para mim, enquanto crítica com motivações duvidosas. Now, shall we?
A Crítica
“-Mummy, I have a voice!
-Well, let me let you into a secret. No one wants to hear it.”
The Crown
Maria Francisca Gama tem uma voz: sabe escrever frases e colocá-las de forma ordenada e estilizada (e até diria que mais ou menos bem estilizada). Mas não tem nada para dizer, e saber escrever não faz dela escritora. Ai, se não faz mesmo.
O livro é claramente estruturado entre duas partes: uma primeira parte de diário de bordo autobiográfico de uma viagem de casal ao Brasil, e uma segunda parte o retrato de um caso mitológico de violação. A descrição feita do Brasil é um retrato fiel do tipo de comentário que se ouve em círculos privilegiados, ou não fosse a primeira frase do livro “Há qualquer coisa bonita na pobreza.”; mas dei de barato, na possibilidade de ser exclusivamente algo das personagens e não da autora. Mas o livro começou a tomar um percurso vicioso: a cada narração ignorante e eurocêntrica do Brasil e semelhanças infelizes com o que seria um photodump no Instagram, o meu semblante passou de neutro para incredulidade, do género “não acredito que estou a ler isto”.
Em primeiro lugar, os apontamentos políticos ao longo do livro, que quebravam a barreira entre a caracterização da personagem e a autora que o escrevia, por serem tão descabidos e fora de contexto na narração. Qual foi o objetivo mesmo? Num meio onde todos os agentes culturais são hiperpolitizados, e a autora não o é, fez uma tentativa falhada de dar opiniões políticas para tentar convencer os seus pares a levarem-na a sério como escritora? Ou porventura queria dar signaling a betos, porque a narração literária valida o estilo de comentários superficiais e ignorantes deste tipo de pessoas na vida real- e, portanto, a vítima seria da Iniciativa Liberal? Já para não falar da escolha, que me resta assumir como intencional, de que o percurso mau foi o da esquerda, e o da direita teria sido bom. Se não sabe de política ou não se interessa, não tente entrar na onda só porque atualmente os agentes culturais são todos politizados. Salva-me a mim da vergonha alheia de ler um parágrafo sobre a maioria absoluta do PS.
Mas a cereja no topo do bolo para mim foi mesmo a seguinte frase, imediatamente antes de uma descrição gráfica e violenta de uma violação: “Tinha muito orgulho em dizer que tinha sido uma das primeira militantes da Iniciativa Liberal.” É tão hilariante para mim esta escolha tão pobre de como começar a narração de um evento traumático, que não tenho como não utilizar este excerto como ponto que valida o meu argumento principal: o seu desinteresse com a dor da vítima que narrou em concreto e das vítimas de violação em abstrato nota-se pelo desenquadramento emocional no desenrolar do clímax narrativo.
Mas falando da descrição da violação em concreto. Uma mulher branca de classe média alta, num país de “terceiro mundo”, violada por uns favelados na rua, que posteriormente se enforca por não aguentar com o trauma emocional da experiência. Vamos aos factos: apenas 20% das violações são cometidas por estranhos[1]. A grande maioria das violações é cometida no seio familiar, particularmente violação intra-marital, em que a violação não toma contornos preto no branco de sadismo como toma neste livro. Mas como se não bastasse, escolheu um dos finais mais preguiçosos, mas mais teatrais (para acrescentar ao efeito dramático): suicídio por enforcamento. A conclusão simples a que chego é que o livro não é para consciencializar, mas para chocar, e consequentemente vender livros, reforçando estereótipos que invalidam as experiências das vítimas reais.
“Isabel, it’s not that deep.”, poderiam arguir. Mas eu discordo. Tudo é passivo de crítica, e tudo é político, mas especialmente um livro em que o plot point é uma violação.
Ser escritor não é adicionar efeitos fantásticos e depois defender-se por detrás de um escudo de “é ficção”. A consequência que a autora ditou à sua personagem foi a da vítima perfeita- a morta. Porque as mortas nunca apresentam queixas, nunca vão a julgamento, nunca lidam com o questionar constante da veracidade da sua experiência, não escolhe diariamente viver a vida mundana apesar de carregar um trauma para o resto da vida. A verdade é que a maioria das vítimas não têm destinos tão teatrais, mas bem mais vulgares e dolorosos nas consequências. Este livro ENERVA-ME porque é tão ignorante- e não sei qual será pior- se ignorante de propósito, ou só por preguiça.
Portanto, intencionalmente desinformada para alimentar um medo profundo que as mulheres (a sua grande fatia de leitores) têm, e ganhar dinheiro com um livro de forma fácil, à custa das vítimas reais. Ou então desinformada por preguiça, mostrando que não é realmente escritora porque não tem nenhuma narrativa a acrescentar, limitando-se a disseminar a narrativa já existente.
Maria Francisca Gama, na minha opinião, não tem mérito estilístico e o seu sucesso não se dá por escrever bem. Mas, de novo, estou a dar atenção ao seu trabalho, e a autora eventualmente utilizará a minha crítica para se regozijar que chegou a algum lado, para começar a ter haters. Talvez. “Falem mal ou falem bem, mas falem.”.
Ou se calhar sou eu que estou errada e ser escritor é mesmo isto, e é por isso que “A Cicatriz” ou Colleen Hoover são os bestsellers em Portugal. Eu respeito literatura de consumo fácil (apesar de não parecer depois da minha crítica tão azeda); o que eu não respeito é como a literatura best-seller está a ser utilizada (na minha opinião, de forma preversa) para reinforçar estereótipos sobre as mulheres. Não acham estranho os dois best sellers do momento serem sobre versões romanescas sobre violência de género? Novamente, podem utilizar o escudo de “é só ficção”. Mas nunca é “só”. O “só” vem acompanhado de um contexto em que estas autores se sentem confortáveis para escrever de uma forma que pode, e muda as perceções sociais sobre a violência de género. E pelo seu interesse fingido na dor das vítimas, é da minha opinião que merecem ser censuradas.
Artigo originalmente escrito para o Jornal NOVO.
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Vemo-nos em breve!
Isabel Lobo
[1] https://rainn.org/statistics/perpetrators-sexual-violence